Defesa dos animais e ambientalismo: a divergência não está no foco no curto ou longo prazo

Luciano Carlos Cunha[1]

Considere a seguir dois tipos diferentes de intervenções que afetam os animais que se encontram na natureza e duas crenças comuns, porém equivocadas, em relação a ambas.

(1) Existem programas ambientalistas que envolvem matar um grande número de animais selvagens, em nome da preservação da biodiversidade e do equilíbrio ecológico[2]. Uma visão comum consiste em pensar que essas intervenções prejudicam alguns animais agora para evitar um prejuízo ainda maior para os animais em longo prazo.

(2) Em contraste, existem propostas para ajudar os animais selvagens que são focadas na preocupação com o bem dos próprios animais, e não em metas ambientalistas[3]. Uma visão comum consiste em pensar que essas propostas beneficiam alguns animais agora e negligenciam o risco de isso aumentar ainda mais o sofrimento e as mortes em longo prazo.

De acordo com essas duas crenças comuns, ambas as perspectivas possuem a mesma meta (beneficiar os animais) e a diferença entre elas seria que uma leva em conta o longo prazo e a outra não. Perceberemos a razão pela qual ambas as crenças são equivocadas se repararmos em quais critérios seriam utilizados por defensores dos animais e por ambientalistas para avaliar o quão boa ou ruim seria a história completa do mundo[4]. Dessa maneira, evitaremos qualquer confusão que possa surgir em relação ao que cada uma dessas perspectivas almeja em curto e em longo prazo.

Defensores dos animais avaliarão o quão boa ou ruim é a história completa do mundo com base em como os seres sencientes serão afetados positiva ou negativamente. Já as perspectivas ambientalistas a avaliarão de acordo com o grau com que os ecossistemas exibem características como complexidade, diversidade, raridade, propriedades estéticas, no quão bem representam certos ideais, se contêm ou não somente membros de espécies nativas, no quão pouco foram transformados por humanos, etc[5]. No ambientalismo essas características são valorizadas em si (e não, instrumentalmente para garantir o bem dos animais).

Isso significa que os ambientalistas poderiam dizer que, se uma história completa de mundo apresentar em maior grau os ecossistemas naquelas configurações, então ela é melhor, mesmo que seja muito pior para os animais (por exemplo, mesmo que contenha muito mais sofrimento e mortes prematuras, menos vidas positivas etc.).

Assim sendo, o objetivo das práticas ambientalistas de matança de animais selvagens não é prevenir que mais sofrimento e mortes prematuras ocorram dali para frente. O objetivo é garantir que os ecossistemas exibam aquelas propriedades, mesmo que isso aumente a quantidade de sofrimento e de mortes dos animais afetados dali para frente.

Por outro lado, nos programas de ajuda aos animais selvagens que são motivados por preocupação com os próprios animais, o que é almejado é justamente garantir que, dali para frente, ocorra a melhor história de mundo para os animais afetados. Portanto, é também equivocada a crença de que a proposta de ajudar os animais selvagens ajuda alguns animais agora e negligencia a o impacto de tais ações em longo prazo.

Em resumo, os programas de ajuda aos animais selvagens que são motivados por preocupação com os próprios animais almejam exatamente aquilo que o senso comum acredita equivocadamente que é almejado pelo ambientalismo. Essa crença equivocada sobre o que é almejado por cada uma das perspectivas é um dos fatores que conduzem algumas pessoas a rejeitarem a proposta de ajudar os animais e a aceitarem as medidas ambientalistas.

REFERÊNCIAS        

CONABIO. Estratégia Nacional Sobre Espécies Exóticas Invasoras. Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Biodiversidade de Florestas, 2009.

COUNCIL OF EUROPE. Convention on the conservation of european wildlife and natural habitats: Recommendation on the eradication of the ruddy duck (oxyura jamaicensis) in the western palaearctic by 2020. Standing Committee 36th meeting Strasbourg, 15-18 nov. 2016.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

DORADO, D. El conflicto entre la ética animal y la ética ambiental: bibliografía analítica. Tese (Doutorado em Biblioteconomia). Madrid: Universidad Carlos III, 2015.

ÉTICA ANIMAL. A importância do futuro. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2018.

ÉTICA ANIMAL. Um exemplo prático da oposição entre ambientalismo e consideração pelos animais: a matança ambientalista de javalis e javaporcos no Brasil. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 27 Jan 2021b.

FARIA, C. Muerte entre las flores: el conflicto entre el ambientalismo y la defensa de los animales no humanos. Viento Sur, v. 125, p. 67-76, 2012.

FARIA, C. Sobre o bem de tudo e de todos: a conjunção impossível entre ambientalismo e libertação animal. Agora: Papeles de Filosofia,v. 30, n. 2, p. 27-41, 2011.

GREAVES, H. & MACASKILL, W. The case for strong longtermism. Global Priorities Institute, v. 7, set. 2019.

HARGROVE, E. C. (org.), The Animal Rights/Environmental Ethics Debate:The Environmental Perspective. Albany: State University of New York, 1992.

SHELTON. J. A. Killing Animals That Don´t Fit In: Moral Dimensions of Habitat Restoration. Between the Species, v. 13, n. 4, 2004.

ZIMMERMAN, M. E.; CALLICOTT, J. B.; SESSIONS, G.; WARREN, K. J.; CLARK, J. (orgs.). Environmental Philosophy: From Animal Rights to Radical Ecology. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1993.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para um exemplo no Brasil, ver Conabio (2009). Para um exemplo na Europa, ver Council of Europe (2016). Para uma crítica a esse tipo de prática no Brasil, ver Ética Animal (2021b). Para uma crítica geral, ver Shelton (2004) e Faria (2011, 2012).

[3] Para uma fundamentação dessa proposta, ver Cunha (2022a).

[4] Para uma defesa da importância de se levar em conta histórias completas de mundo nas deliberações éticas, ver Ética Animal (2018). Ver também Greaves; Macaskill (2019).

[5] Para uma introdução às muitas variantes do ambientalismo, ver Hargrove (1992) e Zimmerman et. al. (1993).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.