Luciano Carlos Cunha[1]
Uma objeção frequentemente levantada contra garantir direitos legais para os animais é a alegação de que isso seria fazer uma imposição às pessoas, pois as obrigaria a respeitar os animais.
Segundo essa objeção, os defensores dos animais têm o direito de apresentarem os argumentos defendendo sua posição, mas cada pessoa deve escolher aceitá-los ou não por vontade própria, sem uma lei que as obrigue.
Esse argumento tem dois problemas fundamentais:
O primeiro, é que é especista, pois os seus proponentes aceitam direitos legais para os humanos. Tanto é assim, que o argumento defende que aquelas pessoas que quiserem explorar os animais deveriam ter garantido o seu direito de fazê-lo.
Além disso, esse argumento seria amplamente repudiado se as vítimas fossem humanas. Imagine, por exemplo, se alguém defendesse que as pessoas deveriam ser livres para aceitar ou não a regra contra assassinar humanos, sem uma lei que as obrigue, pois isso seria fazer uma imposição às pessoas.
O segundo problema é que o argumento é auto-refutante, pois defende que deveria haver um direito legal protegendo os indivíduos contra imposições, e ao mesmo tempo defende que deveria haver um direito legal de fazer imposições sobre os animais não humanos, causando-lhes sofrimento e a morte.
Por vezes, esse argumento adquire uma forma mais extrema, alegando que o mero fato de se argumentar que o especismo é injustificável já é errado, pois isso seria “impor um estilo de vida para os outros”.
Além de apresentar os mesmos problemas do argumento anterior, esse argumento é um exemplo extremo de arbitrariedade. De um lado, o mero fato de apresentar argumentos a favor dos animais é considerado uma imposição injustificada. De outro, impor literalmente uma vida de sofrimento extremo e também a morte a uma quantidade gigantesca de indivíduos não é sequer considerada uma imposição, porque suas vítimas são animais não humanos.
Desnecessário dizer que, se a mesma acusação aparecesse em relação a práticas cujas vítimas são humanas, ela sequer seria levada a sério. Seria percebido prontamente o quão tendenciosa e desonesta é a acusação. É somente devido à alta predominância do especismo que acusações desse tipo surgem quando as vítimas são animais não humanos.
O fato de existirem pessoas que se intitulam veganas e aderem a esse ponto de vista, afirmando coisas como “eu sou vegano, mas quem quiser explorar os animais deve ter garantido seu direito de fazê-lo, porque ninguém deve impor nada a ninguém” é um sinal de quanto o especismo está presente mesmo dentro do chamado movimento vegano. Se as vítimas fossem humanas, seria prontamente percebido o quão contraditório é defender, ao mesmo tempo, que é errado impor algo a alguém, e que também quem quiser impor algo a alguém deveria ter garantido o direito de fazê-lo. Sob a máscara de tolerância, o que estão a defender é, na verdade, que é errado contrariar quem quer explorar os animais, e que é certo impor sofrimento e morte aos animais não humanos.
Em resumo, apesar de essas pessoas não consumirem os animais, possuem uma visão sobre os animais que é exatamente igual à visão daquelas pessoas que consomem os animais e acham que é certo fazê-lo: acreditam que há um direito de causar sofrimento e morte aos animais. A única diferença é que escolhem não consumi-los. Mas, é exatamente assim que pensa quem consome os animais e acha que isso está correto (pois não defendem que há obrigação de consumir os animais; defendem apenas que é certo fazê-lo). Em resumo, isso mostra que, infelizmente, nem todo mundo que é vegano rejeitou o especismo.
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
