Se o especismo for natural, então o especismo está justificado?

Luciano Carlos Cunha[1]

Frequentemente é defendido que o que torna justo dar consideração moral apenas a humanos (ou dar uma consideração moral maior aos humanos) é que essa é uma atitude natural para nós. Por exemplo, para tentar justificar o consumo de animais, comumente é dito “a natureza é assim mesmo: os animais matam e comem membros de outras espécies”; “humanos estão no topo da cadeia alimentar”; “humanos naturalmente são caçadores” etc.

Por vezes, os defensores dos animais respondem negando que consumir animais seja natural para os humanos. Entretanto, essa resposta não discute (em vez disso, assume) o principal problema do argumento: assumir que, se uma atitude for natural, ela é justificada.

Portanto, a seguir, veremos alguns problemas com o apelo ao que é natural[2].

O primeiro problema é que o argumento não explica por que o fato de um comportamento ser natural tornaria-o justo. Isso é algo simplesmente assumido, sem nenhuma explicação. Mas, é exatamente isso que o argumento teria que explicar.

O segundo problema é que a expressão “comportamento natural” é utilizada nos mais variados sentidos. Entretanto, seja lá em que sentido estiver a ser utilizada, o fato de um comportamento ser natural não parece torná-lo justo. A seguir veremos alguns exemplos do que comumente se quer dizer quando se afirma que comer carne é natural para os humanos. Entretanto, os mesmos problemas aparecem para qualquer outro apelo ao que é natural.

Por vezes o que se quer dizer com “comer carne é natural para os humanos” é que é possível para o organismo humano consumir carne. Entretanto, se o mero fato de um comportamento ser possível tornasse-o justo, qualquer comportamento possível seria justo. Por exemplo, também é possível para o organismo humano consumir carne humana, mas isso não parece justificar tal ato. Da mesma maneira, o mero fato de ser possível para o organismo humano consumir a carne de outros animais não implica que seja justo fazê-lo.

Em outras vezes, o que se quer dizer quando se afirma que um comportamento é natural, é que há uma inclinação instintiva em direção a esse comportamento, como se fosse algo “escrito na nossa genética”. Entretanto, novamente, isso não parece ser suficiente para justificar um comportamento. Imagine, por exemplo, que os humanos tivessem uma inclinação instintiva para serem tendenciosos em seus julgamentos e para abusar dos mais vulneráveis. O fato de haver uma tendência instintiva não torna tais comportamentos justos.

Outra alegação muito comum é a de que o consumo de animais está justificado porque, na natureza, os animais comem uns aos outros. A ideia por trás desse argumento é o de que, se os animais na natureza fazem determinada coisa, então devemos fazer o mesmo.

Entretanto, há dois problemas aqui. O primeiro, é que há animais que não comem outros animais. Já que o argumento pretende justificar o consumo de animais, é no mínimo tendencioso escolher imitar justamente os animais que comem outros animais, e não os que não comem, sem dar nenhuma razão adicional para essa escolha.

O segundo problema é que há animais na natureza que cometem roubos, estupros, assassinatos, comem membros de sua própria espécie, incluindo filhotes de rivais ou mesmo os próprios filhotes. Ninguém argumenta que é certo que os humanos façam o mesmo só porque os outros animais também o fazem. O apelo ao que os animais fazem surge quase que exclusivamente para tentar justificar o consumo de animais. Além disso, os animais na natureza também não possuem sistemas de hospitais, celulares, computadores, escolas, bibliotecas, roupas, carros etc. É no mínimo arbitrário querer imitar os animais na natureza apenas quando eles consomem outros animais, e não em todo o resto.

Em outras vezes, o que é defendido é que matar os animais para comer é certo porque os humanos estão no topo da cadeia alimentar. É frequentemente apontado que, na natureza, os animais maiores matam e comem os menores, e que é isso o que torna certo que os humanos matem os outros animais para comer. Entretanto, não há nada que obrigue os humanos e consumirem outros animais. Então, isso não é diferente de dizer que  temos justificativa para fazer algo só porque temos o poder de fazê-lo (e já vimos acima os problemas com essa visão). Por exemplo, imagine que existisse uma espécie mais poderosa do que a humana, e que seus membros criassem humanos para comer. Esses seres estariam no topo da cadeia alimentar, mas isso não parece tornar o seu comportamento justo.

Por fim, por vezes o que se quer dizer quando se diz que um comportamento é natural é simplesmente dizer que ele é correto. Mas, se for assim, quando se diz “esse comportamento é certo porque é natural”, a alegação é vazia, pois o que se está a dizer é que “esse comportamento é certo porque é certo”, sem dar nenhuma razão para pensarmos que é certo.

Isso tudo nos conduz à seguinte conclusão: não parece haver correlação alguma entre o que é natural e o que é justificável.

REFERÊNCIAS

MILL, J. S. On Nature. In: __________. Nature, The Utility of Religion and Theism. London: Rationalist Press Association, 1904, p. 07-33.

RACHELS, J.; RACHELS, S. The Elements of Moral Philosophy. 7a ed. New York: McGraw-Hill, 2012.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para uma crítica detalhada ao apelo ao natural, ver Mill (1904) e Rachels; Rachels (2012, p. 44-8, 54-8).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.