Luciano Carlos Cunha[1]
Um dos argumentos por vezes utilizados para se negar consideração moral aos animais aponta que a ética é uma atividade humana e que, por isso, só humanos devem receber consideração moral. Veremos a seguir três críticas a esse argumento.
A primeira crítica aponta que é falso que a ética seja uma atividade humana. Os humanos que pensam sobre ética não o fazem porque são humanos, mas porque são racionais. Por exemplo, se houverem seres racionais em outros planetas, muito provavelmente não serão humanos, mas é bastante provável que consigam refletir sobre como deveriam agir. E, mais importante: há humanos que não possuem a capacidade de pensar sobre ética, como bebês, crianças até certa idade, e vítimas de certos acidentes ou doenças que afetam as capacidades cognitivas. Então, a ética é uma atividade dos seres que possuem certas capacidades cognitivas desenvolvidas, e não dos humanos em geral.
A segunda crítica aponta que, do fato de uma atividade ser exercida por um grupo de seres, não se segue que os beneficiários dessa atividade tenham de ser também capazes exercer essa atividade. Por exemplo, para exercer a medicina, alguém precisa ser médico, mas não faz sentido dizer que, por causa disso, só os médicos deveriam receber tratamento médico. Para dar aula de música, alguém precisa saber sobre música, mas não faz sentido dizer que só quem já sabe algo sobre música deveria ter aulas de música.
Portanto, do fato de a ética ser uma atividade de seres que possuem certas capacidades cognitivas, não se segue que os beneficiários de suas decisões tenham de ser somente os seres que possuem essas mesmas capacidades. Isso já é amplamente aceito no caso humano. Do contrário, as crianças até certa idade e os humanos que possuem certos impedimentos cognitivos estariam sendo usados da mesma maneira que os animais não humanos são usados (como comida, para fazer vestimentas, como modelo de testes etc.). Entretanto, se o fato de os humanos carecerem dessas capacidades não pode justificar fazer a eles o que é comumente feito aos animais não humanos, então, o fato de os animais não humanos carecerem de tais capacidades tampouco poderia justificar o que é comumente feito a eles[2].
Portanto, o argumento em questão confunde o que é relevante para saber quem é responsabilizável (a capacidade para refletir sobre o que deve fazer) com o que é relevante para saber quem precisa de consideração (a capacidade de ser prejudicado/beneficiado)[3].
Por fim, a terceira crítica aponta que o argumento é, na verdade, circular. O argumento pretende explicar qual a relevância de se pertencer à espécie humana para saber quem deve ser considerado. Afirma que os animais não humanos devem ser excluídos da esfera de consideração moral porque não são capazes de agir eticamente. Entretanto, o argumento inclui na esfera de consideração moral os humanos que carecem dessa capacidade (pelo menos, é isso que parece ser sugerido quando alguém diz que a ética é um atividade humana, pois poderia ser dito, por exemplo, que é uma atividade dos seres racionais, o que não inclui todos os humanos).
Ou seja, o argumento visa explicar uma diferença moralmente relevante entre humanos e não humanos, mas, ao perceber que há humanos que não cumprem o critério que propõe, os inclui na esfera de consideração moral por pertencerem à mesma espécie dos que conseguem raciocinar sobre ética. Em resumo, o argumento é circular por pretender explicar a relevância do critério da espécie mas, na verdade, já assumir esse critério de antemão.
Em resumo, esse argumento não é diferente do apelo às capacidades e do apelo ao grupo, mas apresentado com outras palavras. Possui, portanto, exatamente os mesmos problemas.
REFERÊNCIAS
CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021.
EHNERT, J. The argument from species overlap. Blacksburg: Virginia Polytechnic Institute and State University, 2002.
HORTA, O. Moral Considerability and the Argument from Relevance. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 31, n. 3, p. 369-388, 2018a.
HORTA. O. The Scope of the Argument from Species Overlap. Journal of Applied Philosophy, v. 31, p. 142-154, 2014.
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Para um desenvolvimento desse argumento, ver Ehnert (2002) e Horta (2014).
[3] Para uma discussão sobre o que é relevante para questões de consideração moral, ver ver Horta (2018a) e Cunha (2021, p. 57-61).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
