O que é relevante para saber a quem devemos consideração?

Luciano Carlos Cunha[1]

Dois pesos e duas medidas

Os animais não humanos são explorados e mortos pelos humanos todos os dias para as mais diversas finalidades. São usados como alimento, vestuário, modelo de testes, para entretenimento, lazer e como trabalhadores ou ferramentas. Essas práticas causam sofrimento e morte a um número gigantesco de animais não humanos e são amplamente aceitas. Entretanto, se as vítimas fossem humanas, tais práticas seriam consideradas monstruosas.

Além de serem vítimas de práticas humanas, os animais não humanos são também prejudicados em alto grau por processos naturais como desnutrição, fome e sede, doenças, lesões físicas, estresse psicológico, eventos meteorológicos hostis, desastres naturais, e conflitos interespecíficos, intraespecíficos e sexuais. Essa é a situação típica da maioria dos animais que se encontra  na natureza. A visão padrão é a de que não deveríamos ajudá-los: deveríamos deixar a natureza seguir o seu curso. Mas, novamente, se as vítimas fossem humanas, a visão padrão seria a oposta, isto é, de que recursos deveriam ser empregues para ajudá-los.

Essas atitudes revelam que boa parte das pessoas adota dois pesos e duas medidas, dependendo da espécie dos afetados por sua decisão. Se são animais não humanos, não recebem ajuda, são torturados e mortos. Se são humanos, recebem consideração moral plena. Trata-se, portanto, de um padrão especista antropocêntrico de moralidade.

Tentativas de justificar o especismo antropocêntrico

Várias são as tentativas de justificar esse padrão duplo de moralidade. Dentre os motivos mais alegados para tentar justificar que, ou apenas o bem dos humanos importa, ou que importa em maior grau, estão:

(1) O próprio fato de pertencerem à espécie humana.

(2) O fato de pertencerem à mesma espécie que pertencemos.

(3) Alegações metafísicas, como de que os humanos foram criados à imagem e semelhança de um criador; possuem uma relação especial com esse criador; possuem uma alma imortal; possuem dignidade; pertencem a uma categoria ontológica superior etc.

(4) A alegação de que os humanos possuem (ou tem o potencial para) capacidades como razão, linguagem, liberdade, agência moral, senso de justiça, autonomia, cultura, de fazer acordos mútuos, de respeitar direitos, de reivindicar direitos etc.

(5) A alegação de que os humanos possuem (ou tem o potencial para ter) vários tipos de relações, como relações afetivas, de solidariedade mútua, políticas e de poder.

(6) O fato de todos os humanos pertencerem à mesma espécie dos que possuem aquelas capacidades ou relações (ainda que nem todos os humanos as possuam de fato).

(7) A alegação de que a ideia de espécie não é uma mera construção social (é baseada em características biológicas).

(8) A alegação de que desconsiderar os animais não humanos é uma atitude natural.

(9) O fato de a exploração animal ser tradicional e fazer parte da cultura de diversos povos.

Entretanto, faz sentido perguntar qual a relevância dessas coisas para saber quem devemos respeitar. Fazendo essa pergunta, podemos perceber que todas as defesas do antropocentrismo simplesmente assumem que o critério que adotam é relevante para saber a quem deveríamos dar consideração moral, sem oferecer nenhuma explicação de por que o mesmo seria relevante.

Isso vale para todas as tentativas de justificar o antropocentrismo, sejam as baseadas no critério do pertencimento a certa espécie, na posse de certas características metafísicas, na posse de certas capacidades ou relações, e também nas que se baseiam no fato de uma distinção ser baseada em uma característica biológica ou no fato de um comportamento ser natural ou tradicional.

Além disso, há razões para pensar que nenhum desses critérios é relevante para saber a quem dar consideração moral. Isso é apontado pelo argumento da relevância, descrito a seguir.

O argumento da relevância

O argumento da relevância[2] parte da premissa trivial de que, para um critério estar justificado, tem de ser baseado em uma distinção relevante para a questão que visa responder. Por exemplo, o que é relevante para avaliar um candidato para uma equipe médica em um hospital são suas habilidades com a medicina, se é pontual, se trata bem os pacientes etc. Já para avaliar quem deveria ser atendido em uma emergência de um hospital é saber quem está ferido, quem está gravemente doente, quem corre risco de morrer etc.

Trocar os critérios seria aplicar critérios que são relevantes em um contexto em outro no qual eles não são. Isso aconteceria, por exemplo, se fosse exigido que, para alguém ser aceito para trabalhar em uma equipe médica, teria de estar doente e que, para alguém ser atendido por um médico, também teria de ser médico. É claro, essa atitude absurda descrita no exemplo dificilmente ocorreria na vida real. Entretanto, o argumento da relevância aponta que o padrão antropocêntrico de moralidade comete uma confusão muito similar. Vejamos:

O argumento da relevância defende que nenhuma das defesas do antropocentrismo adota critérios relevantes para determinar quem deveria receber consideração moral. Isso seria assim porque o que está em jogo em questões de consideração moral é saber como nossos atos e omissões poderiam afetar positiva ou negativamente quem fosse atingido por eles. Dar consideração moral a alguém é agir de modo a evitar prejudicá-lo e a buscar beneficiá-lo. Se é assim, então o critério adequado para saber a quem dar consideração moral é saber quem é passível de ser prejudicado e beneficiado.

A espécie à qual alguém pertence; ter sido ou não criado à imagem e semelhança de uma divindade, possuir ou não uma alma imortal; ter ou não certas capacidades e certas relações; ter ou não o potencial para tais capacidades ou relações; saber se um comportamento é ou não natural ou tradicional etc., nada disso determina quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado. Portanto, não podem ser características relevantes para saber a quem dar consideração moral, conclui o argumento da relevância.

Por outro lado, ser capaz de ter experiências positivas e negativas (isto é, ser capaz de desfrutar e de sofrer) determina se alguém é passível de ser prejudicado e beneficiado. É por essa razão que os proponentes do argumento da relevância defendem que a senciência é o critério adequado de consideração moral.

Confundindo o que é relevante para considerar e o que é relevante para responsabilizar

Tradicionalmente, critérios que são relevantes para determinar quem faria sentido responsabilizar têm sido aplicados para determinar quem deveria receber consideração moral. Por exemplo, é comum que se defenda que, para termos obrigações para com alguém, é necessário que esse alguém também seja capaz de reconhecer obrigações[3]; que para alguém poder receber a proteção dos princípios de justiça, precisa ter um senso de justiça[4], que para ter direitos, precisa ser capaz de entender a noção de direitos[5] etc. Essas alegações tem sido amplamente utilizadas para tentar justificar todas as coisas terríveis que são feitas aos animais não humanos. Entretanto, a posse dessas capacidades pode ser relevante para saber a quem responsabilizar, mas não para saber a quem considerar moralmente, Isso já é reconhecido no caso dos bebês, das crianças, dos humanos com deficiência cognitiva, etc. Entretanto, reconhecer isso implica reconhecer que todo ser senciente, independentemente de espécie, deve receber consideração moral..

A desconsideração que os animais não humanos tipicamente recebem ocorre, pelo menos em parte, devido à crença de que, para que devamos dar consideração moral a alguém, é necessário que esse alguém seja também capaz de agir moralmente. Entretanto, como aponta o argumento da relevância, essa é uma confusão análoga a pensar que, para que alguém deva ser atendido por um médico, é necessário que esse alguém também seja médico.

REFERÊNCIAS

CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021.

FRANCIONE, G. Introduction to animal rights: your child or the dog? Philadelphia: Temple University Press, 2000.

FRANKLIN, J. H. Animal Rights and Moral Philosophy. New York: Columbia University Press, 2005.

HORTA, O. Moral Considerability and the Argument from Relevance. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 31, n. 3, p. 369-388, 2018a.

KANT, I. Groundwork of the metaphysic of morals. London: Hutchinson, 1948 [1785].

KORSGAARD, C. Fellow Creatures: Kantian Ethics and Our Duties to Animals. The Tanner Lectures on Human Values, v. 24, p. 77-110, 2005.

RAWLS, J. A Theory of Justice. Revised Edition. Harvard: Harvard University Press, 1999 [1971].

ROSS, W. D. The right and the good. Oxford: Clarendon Press, 1930.

ROWLANDS, M. Animal Rights: A Philosophical Defense. London: MacMillan Press, 1998.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Exemplos do argumento da relevância podem ser encontrados em Horta (2018a) e Cunha (2021, p. 57-61).

[3] Ver, por exemplo, Kant (1948 [1785]). Para uma crítica, ver Korsgaard (2005) e Franklin (2005).

[4] Ver, por exemplo, a posição de Rawls (1999 [1971], p. 15, 441, 442, 448). Para uma crítica, ver Rowlands (1998).

[5] Ver, por exemplo, a posição de Ross (1930, p. 50). Para uma crítica, ver Francione (2000).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.