Mas, os humanos não são capazes de sofrer em maior grau?

Luciano Carlos Cunha[1]

Por vezes é defendido que está de acordo com a igual consideração priorizar humanos. A razão para isso seria que, devido às suas capacidades cognitivas mais sofisticadas, os humanos sofreriam de modo mais intenso. Por exemplo, são capazes de sofrer por antecipar e lembrar de eventos negativos.

É verdade que, por vezes, uma maior capacidade cognitiva implica em sofrimento maior. Por exemplo, somente alguém que entende que será morto daqui a uma semana é capaz de sofrer por antecipação. Somente alguém que se lembra de uma violência que sofreu há algumas décadas é capaz de sofrer por recordação. Entretanto, em muitas outras vezes é a menor capacidade cognitiva que implica no sofrimento maior. Por exemplo, animais não humanos e crianças pequenas tipicamente sofrem mais ao receberem uma injeção ou medicamento justamente por não entenderem que estão sendo ajudados com isso. Além disso, seres com maiores capacidades cognitivas também podem ter o seu sofrimento presente aliviado por recordação ou antecipação de eventos positivos, algo impossível para os seres que não têm essa capacidade[2].

Além disso, normalmente uma menor capacidade cognitiva vem acompanhada de uma maior vulnerabilidade. É por essa razão que bebês ou adultos que sofrem de algum impedimento cognitivo necessitam de muito mais cuidados do que necessitam os adultos normais.

Claro, podem existir casos nos quais alguém tem uma maior capacidade cognitiva e também uma vulnerabilidade maior. Por exemplo, alguém com as faculdades mentais de um humano adulto normal, mas tetraplégico, é mais vulnerável do que uma criança pequena. Contudo, se além de estar tetraplégico, também tivesse suas capacidades cognitivas reduzidas, seria ainda mais vulnerável.

Portanto, uma maior capacidade cognitiva nem sempre implica em um dano maior. Na verdade, dada a relação entre menor capacidade cognitiva e vulnerabilidade, na maioria dos casos, acontece exatamente o contrário.

REFERÊNCIAS

ROLLIN, B. The unheeded cry: animal consciousness, animal pain and science. Oxford: Oxford University Press, 1989.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Ver Rollin (1989, p. 144).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.