Características metafísicas poderiam justificar o especismo?

Luciano Carlos Cunha[1]

Em algumas vezes é defendido que apenas os humanos deveriam receber consideração moral (ou que deveriam recebê-la em maior grau) porque, alegadamente, os humanos são os únicos que possuem alguma das características a seguir[2]:

(a) Foram criados à imagem e semelhança de um criador;

(b) Possuem uma relação especial com esse criador;

(c) Possuem uma alma imortal;

(d) Possuem dignidade

(e) Pertencem a uma categoria ontológica superior.

As ideias de dignidade e de categoria ontológica superior geralmente são utilizadas em um sentido bastante específico pelos proponentes dessas posições. Normalmente, o que querem dizer é que os humanos possuem um valor especial que implica que devam ser os únicos a serem respeitados (ou que devam ser respeitados em maior grau), e que as razões que temos para respeitá-los não tem a ver com a possibilidade de prejudicá-los ou beneficiá-los, e sim com possuírem esse valor especial.

Há três problemas principais com todas essas tentativas de defender o antropocentrismo[3].

O primeiro, é que é impossível comprovar se alguém cumpre ou não esses critérios. Não é apenas que é impossível de verificar empiricamente se alguém os cumpre ou não: também parece que não há como demonstrar de nenhum outro modo, que os humanos satisfazem esses critérios e os animais não humanos não satisfazem.

O segundo problema é que nenhuma dessas defesas explica por que possuir alguma daquelas características seria relevante para questões de consideração moral. Elas simplesmente assumem de antemão que são relevantes.

O terceiro problema é que há razões para pensarmos que possuir ou não essas características é irrelevante para questões de consideração moral. O que está em jogo em questões de consideração moral é a possibilidade de nossas decisões prejudicarem ou beneficiarem os afetados por elas. Então o que parece ser relevante para saber a quem dar consideração moral é saber quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado. A posse daquelas características não determina quem é passível de ser prejudicado e beneficiado. O que determina isso é a senciência (isto é, ser capaz de ter experiências positivas e negativas).

REFERÊNCIAS

HARRISON, P. Theodicy and animal pain. Philosophy, v. 64, p. 79–92, 1989.

HORTA, O. Un desafío para la bioética:la cuestión del especismo. Tese (Doutorado em Filosofia). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 2007.

REICHMANN, J. B. Evolution, animal ‘rights’ and the environment. Washington: The Catholic University of America Press, 2000.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Exemplos são as posições defendidas por Harrison (1989) e Reichmann (2000).

[3] Para uma análise detalhada dos problemas com essas tentativas de justificar o antropocentrismo, ver Horta (2007, p. 429-464).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.